quarta-feira, 24 de junho de 2009

Liberdade e Desamparo

É domingo, dia de reunir a família, mas Maicon não fala com os pais desde um certo domingo há quase um ano. Resolveu sair de casa para poder viver como pensou que deveria ser a vida. Almejara em sua saída uma liberdade que julgava não ter. Liberdade! Palavra que Maicon desconhecia o significado, muito menos se desejava vivê-la realmente. O que Maicon pôde de fato compreender foi que liberdade é sinônimo de desamparo.
– Liberdade é desapego, é viver sem paparico, cafuné, preocupações de terceiros – dizia para si mesmo no vazio de movimento no quarto.
Parece mesmo uma conseqüência óbvia, quanto maior liberdade alcançada, maior o desamparo sofrido. Liberdade é estar sozinho, ser a única referência e alicerce para encarar o dia-a-dia.
Como se não bastasse à dor do segundo parto que por si só é angustiante, Maicon saiu de casa brigado com o pai. Coisas bobas, corriqueiras, levaram a um insuportável ter de conviver, que fez com que Maicon, primeiro, cortasse os laços afetivos, posteriormente, os laços reais. Essas brigas de família são impossíveis de serem previstas, principalmente ao se tratar da intensidade da repercussão interna em cada membro dessa instituição idealizada como a melhor para se viver.
Maicon agora é homem, encara sua vida como acha que deve e não segue mais palpites de outros. Para chegar a tal patamar sofreu muito com os erros necessários de quem, sem apoio algum, inicia a vida.
Bem sucedido, diz encontrar-se apaixonado pela liberdade e acostumado com o desamparo. Na verdade Maicon endurecera o suficiente para suportar o desamparo que vez por outra bate no silencio de seu quarto. Mais isso não se conta em rodas de pessoas bem sucedidas.
Mas hoje é domingo, lembranças invadem sua solidão. Não que essas lembranças o obriguem a viver outra vez aquele tempo, apenas evidenciam o quanto aqueles dias foram importantes, porém, agora esquecidos, pedem espaço, mesmo que seja somente nas lembranças. Dias como aqueles jamais voltarão:
– Acorde garoto preguiçoso, já são 11 horas. – dizia sua mãe quase sempre.
– Eu já não falei para não beliscar o aipim antes de eu servi-lo no almoço. – era também fala de sua mãe aos domingos, que dizia ainda: – Seu pai queimou a carne outra vez.
– A carne não está queimada sua ignorante. – dizia o pai embravecido.
Aquela balburdia de troca de acusações atingia o equilíbrio na cumplicidade. Os seus pais o cobravam e amparavam-no dos problemas que enfrentava no mundo que se abria diante de seus olhos. Temerário como qualquer jovem, só conseguia enfrentar a vida se pudesse pedir socorro quando o mundo tornava-se grande demais.
Esses pensamentos relembrados tornaram sua magoa pequena. Resolveu visitar seus pais naquele domingo de inverno, frio e ventoso. Não pôde evitar um certo tremor pelo corpo, um certo desconforto no caminho. Sua respiração ficara ofegante a cada rua que passava. Ao chegar na casa de seus pais, contornou por duas vezes a quadra antes de parar. A casa estava com o portão apenas encostado. Maicon entrou silenciosamente, como quem queria ouvir algum barulho que ali dentro estivesse sendo feito, desejoso por associar esses barulhos com sua vida vivida entre aquelas paredes. Bateu na porta, na janela, bateu palmas, chamou, mas ninguém atendeu. Lembrou que muitos domingos sua família almoçava na casa de sua avó materna, mas não tinha coragem de ir até lá.
Ao olhar pelo chão encontrou uma aba de caixa de papelão, sem pensar muito, pegou uma caneta e escreveu: “Estive Aqui. Assinado Maicon. Amo vocês.” Pendurou no portão da garagem, embarcou no carro e voltou para seu apartamento. Desejou retornar e retirar sua declaração de carência, mas relutou e continuou até sua moradia. Depois era somente aguardar um telefonema.
Alguns dias passaram e não recebeu nenhuma noticia de sua família. Então Maicon criou coragem e ligou:
- Alô!
- Alô? Quem fala?
- Sou eu, Maicon – respondeu reconhecendo a voz de se pai.
- Maicon? Quanto tempo.
- Liguei apenas para saber se está tudo bem – respondeu quase perdendo as palavras.
- Sim está! Venha almoçar conosco qualquer domingo, mas avise antes, pois pode ser que sua mãe deseje almoçar na casa de sua avó – respondeu o pai meio sem jeito, como que quisesse uma aproximação, mas não encontrava o caminho.
- Certo, quando for avisarei – respondeu Maicon desligando o telefone.
Ficou um tanto angustiado com a conversa, quis perguntar sobre o que havia deixado escrito no portão da garagem de seus pais, mas não teve coragem. Aquela conversa foi como se tivesse que engolir aquela declaração de amor feita na solidão, mas desejosa de ser compartilhada.
Nem suspeitava que naquele domingo, ao sair da casa de seus pais, algo que não tinha vindo de sua vontade aconteceu. Como que por ironia dos acontecimentos, fortalecendo a idéia de que algo havia quebrado para sempre. O vento que soprava forte naquela tarde fez voar para longe aquela declaração de amor feita num momento de desamparo por um homem que havia alcançado a liberdade. Como se o vento concordasse com a ruptura do vinculo emocional de Maicon com seus familiares. Mesmo que um dia voltasse a falar com seus pais, seu desafeto não poderia ser compartilhado, não da mesma forma.
Quando seus pais chegaram em casa no final daquele domingo, nada encontraram no portão. Entraram, fecharam a casa e dormiram sem nem pensar que Maicon esteve ali.