quarta-feira, 11 de março de 2009

Aurora

O nascer do sol é um fenômeno repetitivo. O hábito já o tornou tão comum que dele nada se espera a não ser estar ali no dia seguinte, como se tal movimento da terra fosse eternizado por uma física exata. Portanto, deveria ser esquecido e descartado como um momento nobre da vida, mas não é. Sempre que posso observo-o atentamente, desde seu aparecimento inicial até a luz ofuscar meus olhos. Quanta beleza em algo tão trivial.
Mas esse eterno retorno do astro luminoso provoca sentimentos que escapam a seqüência lógica de sua física exata. Mesmo sendo objetivamente repetitivo, torna-se internamente singular. Talvez pelo acréscimo de que um dia a mais foi vivido e, portanto, o observador já não é o mesmo. Mais do que isso, penso que depois do sono um novo espaço em branco se desponta para ser preenchido. Um novo vazio de conteúdo para ser escrito da mesma forma que ontem, ou de uma nova maneira.
As primeiras horas do dia que despontam no horizonte não fazem sentido para a humanidade adormecida. Levanta e não acorda, vê o dia já claro, já pronto para ser vivido. Na verdade, a própria vida já está pronta depois do sol indicar o caminho que apenas os que o vêem nascer percebem.
O homem perdeu sua subjetividade que o lança para o futuro vazio de conteúdo e cheio de possibilidades livres numa física exata, tal como a que move regularmente a terra em volta dela mesma para ser observada pelo sol. As possibilidades livres da vida estão restritas pela mecânica dos corpos, eternamente condicionadas ao mesmo movimento. O homem pode escapar da mecânica que o aprisiona quando encontrar na aurora a percepção que ontem não será como hoje e amanhã pode ser de muitas e diferentes formas.
O sol tem o poder de fazer a vida mudar o rumo, pois pode refletir o dia que se foi e propor mudanças no dia que vem. Mas é necessário se diferenciar dos corpos movidos e explicados pela física newtoniana, pois no corpo humano a vida ganha o acréscimo da alma que permite ao corpo a autonomia diante do dia que inicia.
A dimensão do tempo coloca-nos a observar os dias que se foram para poder apontar caminhos aos dias que ainda são possibilidades ao amanhecer.
Por fim, passam muitas coisas no instante de tempo em que o sol inicia seu aparecimento até ofuscar os olhos de quem o observa. Mas nada é mais valioso do que a oportunidade de viver mais um dia como único. E isso só é possível a nós outros, seres de corpo e alma, não só corpo, nem só alma. Se fossemos somente corpo, estaríamos restritos a lei da física exata; se fossemos somente alma, estaríamos restritos ao abstrato atemporal, eternamente o mesmo. Mas, somos corpo e alma, por isso, o tempo é a dimensão necessária para a alma emergir com liberdade na aurora de cada dia.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Dostoiévski me fez Lembrar

Acabei de ler Crime e Castigo de Dostoiévski, eram onze horas da manhã. Ao terminar o segundo e último capitulo do Epílogo, fui tomado de emoções tão mais fortes que as outras que, sem esforços, foram percebidas durante toda leitura. Com que profundidade toca Dostoiévski a alma humana culpada e espedaçada num golpe traiçoeiro da moral. Obviamente que em seu tempo, percebia como poucos o efeito devastador da moral que, como cordas, amaram nossos pensamentos sem dar conta de amarrar nossas paixões, porém, fixa sobre elas a idéia de que todas são vãs. E nosso caminhar sobre a terra fica assim, ideologicamente estruturado e existencialmente fragmentado. Sem perceber, por conta do temor, o homem não consegue enxergar que é o peso da estrutura moral que espedaça sua vida. E como gado ao matadouro, tenta juntar os pedaços sem saber que muitos deles se perderam definitivamente sobre o ideal moral.
Em especial uma cena pintada como arte através de suas palavras me chamou atenção. Raskólhnikov e Sônia dividindo sentimentos sem qualquer palavra, simplesmente porque não cabiam naquele momento. Dostoiévski descreve a cena num descampado perto do local dos trabalhos forçados da prisão em que se encontrava Raskólhnikov, conseguindo descrever os sentimentos sem colocá-los nas bocas dos seus personagens. Diante de tão esplendida descrição das emoções nuas daqueles seres lembrei-me de um momento assim de minha vida. Nele descobri que teria dois amigos para sempre.
Éramos adolescentes na cidade de Joinville, norte do estado de Santa Catarina, quando um de desses dois amigos perdeu a mãe para o câncer. Lembro-me de ter ouvido de sua irmã que não passara a noite em casa.
No outro dia fomos ao velório. Chegando lá, numa igreja evangélica em construção, na parte do térreo, numa sala pequena e desconfortável estava a mãe de meu amigo. Não haviam bancos adequados para acomodar os familiares e não encontramos ali o complemento daquele trio inseparável. Nos dirigimos à escada, na frente da igreja, na parte interna do prédio e o vimos ali sentado na escada ainda em construção, no cimento endurecido, mas sem piso. Escada empoeirada e suja ali estava nosso amigo, solitário e quieto. Sentamos ao seu lado e penso termos, naquele momento, atingido uma sincronia que pude sentir que até gostaríamos de falar alguma coisa para confortar-lhe , mas não foram encontradas as palavras, então como se não pudéssemos resistir começamos a chorar em silêncio. Os três amigos. E naquelas lágrimas dividimos nossa dor, nosso conforto, nosso amor, com o respeito que a ocasião exigia. Nenhuma palavra foi dita durante uns dez minutos até um deles, o que a mão fora morta, quebrar o silêncio com uma piadinha sem muito sentido, mas própria para a ocasião.
Sei que naquele dia um elo de amizade, respeito, fraternidade, honra e cumplicidade nos envolveu para sempre. Encontrei ali meus dois grandes amigos, os quais mesmo separados geofgraficamenbte, estarão unidos por um vinculo sem barreiras, a amizade.