Uma Perspectiva Existencialista
Shakespeare estava certo ao dizer que falar alivia dores emocionais. Mas a ideia não é nova. Desde quando a palavra foi inventada, ela mesma tem sido utilizada para poder transferir de alguma forma as emoções entranhadas em nosso ser para fora, para o mundo. As vezes penso que temos mais necessidade de falar, ou de sermos ouvidos, do que de sermos compreendidos. Apesar disso, muitas vezes ficamos sem palavras, tantas outras, requerem sacrifícios para poder encontrar a palavra certa. Diante dessa necessidade de falar, escapam palavras que não deveriam ser ditas. Nesse momento, concluímos: – Falei demais – Freud diria: – Ato falho. Algumas vezes as palavras não exprimem exatamente o que sentimos, mas mesmo assim nos empenhamos em encontrar a codificação correta de nossas emoções nas palavras, porém, sem sucesso, apenas exprimimos gemidos, o choro ou o riso, que também são formas de dizer. Talvez neles encontremos a catarse que expressa o que as palavras não dizem.
Num texto de Marx encontramos uma afirmação bastante propicia para nosso momento, referindo-se ao surgimento do mundo da linguagem: “(...) a linguagem só aparece com a carência, com a necessidade dos intercâmbios com os outros homens”. Falar sozinho, pelas paredes, evidencia tamanha angustia, tal qual a percepção de ver as palavras voltarem e terem de ser engolidas. Por conta disso, muitos de nós preferimos um Deus para o qual as palavras são dirigidas. Desejamos falar para alguém, desejamos atenção nas nossas palavras. Ainda conforme Marx, referente às primeiras palavras que visavam estabelecer comunicação entre os homens, encontramos a expressão: “sopro de ar agitadas”. Penso que aqui Marx quis dizer que antes das palavras tínhamos tentativas de formular palavras, mas eram expressões de interioridades, anteriores ao desenvolvimento da cultura, tal como a temos hoje. Mesmo aqueles que por razões naturais ou acontecimentos traumáticos foram impedidos de verbalizar, encontraram outros caminhos, como a linguagem de sinais para poder dizer algo ao mundo. A verdade é que precisamos nos comunicar, de alguma forma compartilhar o que sentimos.
Nas Epopéias, os heróis compartilhavam suas virtudes esbravejando suas conquistas, os homens comuns tendiam a se render com clemências e suplicas. Nas orações os judeus temiam dizer sobre suas fraquezas por considerarem seu Deus, ao qual eram dirigidas as palavras, temido. Portanto, preferiam curvarem-se como miseráveis humanos e calarem-se. Os cristãos encontravam conforto e redenção no seu Cristo, por este ser pacífico e acolhedor. Para ele podiam chorar, lamentar, suplicar, pedir. Penso que a religião colocou o primeiro divã sobre a terra, e teve sua serventia. Mas sobre tal afirmação, nenhuma outra religião superou a cristã. O cristianismo aproximou Deus dos homens em Cristo, culpou os homens de seus pecados e os enfraqueceu. Ao mesmo tempo ofereceu redenção por um ato de pura bondade divina no sacrifício da cruz. O resultado desta crença está presente em nossos dias: o homem convencido de sua impotência deposita em Cristo sua esperança. Assim, o cristianismo cria o problema e a solução.
Parece-me que Deus não deu conta ou não quis investir esforços para compreender os dramas humanos. Não sei ao certo se a religião calou Deus por conta de seus dogmas ou Deus não mais se sente representado nela. Estou mais próximo de dizer que a religião inventou Deus a sua imagem e semelhança, para seus interesses, condicionando uma fala específica à Deus, quando Deus mesmo ainda não foi encontrado, muito menos sei se será um dia. Mas essa lacuna que se tornou cratera, nessa solução que se tornou também problema, nesse espaço em que se pode pensar que Deus não existe, mesmo que culpando por tal pensamento, pode-se também encontrar desespero, desconforto e desamparo. Nesta fenda as palavras não passam, não retornam, se perdem. Nela, a angustia é a chama que nos consome e aumenta nossa sensação de solidão. Quando nosso grito dirigido ao mundo não ecoa, a rotina tapa os ouvidos dos outros às nossas palavras. Quando Deus torna-se um vácuo que faz desaparecer as palavras angustiantes de nossa existência, ou mesmo pelo rigor doutrinário da religião que não nos deixa a vontade para dizer tudo o que pretendemos. A ausência de algum Dom não as transforma em arte, pois ao menos o poeta tem o que dizer e a quem dizer.
Na falência desse divã divino erigido pela religião, a contemporaneidade exigiu outro divã, menos vertical e mais horizontal, mais humano. No olhar da religião, mais insignificante, grotesco e presunçoso. Particularmente, vejo como um espaço para poder dizer o que Deus não quis ouvir, o que o mundo, ocupado demais, não parou para escutar, fingiu até mesmo não ver: as angustias acumuladas e cada vez mais empurradas para os porões mais sombrios e gelados da alma humana. Desejoso por querer compreender a existência, não fixá-la, nem desenhá-la, muito menos idealizá-la. Não pretende dizer como a vida tem de ser, mas almeja compreender a vida como ela é, como ela pode ser. Quer se colocar como espaço de não julgamento, permitir que nele se respire confortavelmente, levemente. Que nele se diga qualquer coisa sem medo, sem culpa. Quer ser não apenas confortável para o corpo, mas sobretudo, confortável à alma, se é que podemos chamar assim esse acúmulo de experiências distintas que constroem em nós uma subjetividade. E como poderia proporcionar tal nível de cumplicidade com as mazelas humanas se não fosse ele também humano? A forma mais apropriada para nos referirmos a esse novo divã está no título de um livro de Nietzsche: Humano Demasiado Humano. Humano compreendendo humanos
Depois de Freud tantos outros surgiram, tantas outras técnicas, olhares, compreensões que se somaram e que ousaram dizer que é possível a cura pela fala. Não a fala dirigida a um suposto Deus que nos faz esperar respostas as quais dependem de uma crença para retornarem e, muitas vezes, a crença não é suficiente. Nosso divã não é tão alto, nem tão perfeito, mas é tão humano quanto eu e você. Escapa o determinismo de certas cientificidades que pretendem ser absolutas. Dá as mão à filosofia e caminha numa perspectiva um tanto heideggeriana, sempre a quem do objeto que visa compreender e sabe que nunca o compreenderá totalmente, pois caso um dia tenha tal pretensão, enterrará o movimento dinâmico, próprio da subjetividade. Por essa razão, continuará assim, perseguindo os rastros desse humano sempre na frente.
Dessa forma, fica entre aberta a porta e lançado o convite para nosso Divã Existencialista. Ficam abertos nossos olhos para a existência humana que se dá, muitas vezes, em condições adversas. Nosso empenho dedicado para fazer emergir o real desejo humano e fazer dele um projeto existencial, cujo alvo mais importante é sempre a felicidade.