segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Feridas na Alma

A palavra Alma tem sido utilizada para se referir ao que chamamos de mundo interior, ou seja, o conjunto de sentimentos, emoções, vivencias, significações e pensamentos que pertencem a cada indivíduo. Mas nem sempre alma teve esse significado. Já significou, em momentos historicamente distantes, coração, vida, sangue e, em idiomas como hebraico e o grego, o sentido da palavra alma se aproximou do sentido da palavra espírito, que significava sopro de vida, vento, anjos e demônios...

Husserl, filósofo e matemático alemão, mudou a leitura que a Psicologia tinha da alma, pois afirmava a existência de um elo entre a alma e o mundo em sua volta. Husserl chamou esse elo de intencionalidade da consciência. Não nos deteremos aos dados técnicos que aqui nada interessam, nos deteremos a compreensão de como a alma passou a ser entendida na Psicologia depois de Husserl, principalmente a Psicologia Fenomenológica-Existencialista, para poder entender o processo que ocasiona o que aqui chamamos de feridas na alma.

A partir da reflexões de Husserl, algumas ilusões mantidas pela filosofia idealista e pela religião começaram a ruir, pois a alma não pôde mais ser considerada como existindo desde sempre, contendo em si tudo o que necessita, como se estivesse completamente separada do mundo a sua volta. A primeira grande verdade que aparece é que as coisas com as quais estabelecemos relação nos afetam. Há um canal, pelo qual, fazemos parte do mundo a nossa volta e o mundo passa a fazer parte de nossa interioridade.

Assim, torna-se inevitável que as coisas com as quais estabelecemos relação, ora ou outra, nos afete, nos fira. São as coisas que experimentamos e não fazem bem, as palavras ásperas que ouvimos e nos calamos diante delas, o dia-a-dia dos conflitos inevitáveis dos relacionamentos que nas palavras do poeta encontram o sentido do que almejo expressar: “... como rios secando e as pedras cortando” (Gonzaguinha), referindo-se ao embate entre dois mundos interiores na tentativa de uma relação amorosa que, para poder ser bem sucedida, tem de encontrar a forma mais adequada para que um possa entrar no mundo do outro e deixar que outro entre no seu mundo. Mas, mesmo que a forma mais adequada seja atingida, sempre esbarraremos em farpas. Merleau-ponty, filósofo francês, diz que a relação que estabelecemos com o mundo pode ser comparada ao lábio superior tocando no lábio inferior, deixando um pouco de sua carne e recebendo um pouco da carne do outro lábio. Assim, vivemos deixando um pouco de nossa carne no mundo que resolvemos habitar e colhemos um pouco da carne do mundo habitado. O desafio clínico é encontrar o caminho mais adequado para cada sujeito nas suas relações com o mundo e com os outros.

E se a Vida se Repetir Eternamente

O termo Eterno Retorno desenvolvido por Nietzsche, considera a repetição constante da vida uma condição eterna, ou seja, todas as coisas retornam eternamente. Assim, viveremos a mesma vida, com toda a dor e felicidade, eternamente. Tudo o que existiu, existirá outra vez, a história se repetirá, as múltiplas formas de organização da matéria se repetirão, pois as forças são eternamente ativas. A vida, para Nietzsche, se constitui como vontade de potência e são essas energias potencializadas que se repetem eternamente, pois a eternidade é a condição do ciclo da ação das forças.


Dessa forma, Nietzsche concluiu que o Eterno Retorno só pode ser compreendido como um circulo eterno de manifestação de forças, sem jamais chegar a um momento de repouso, sem jamais chegar a um equilíbrio, mas seus movimentos são de igual grandeza para cada tempo. Assim, todos os instantes da vida retornarão, cada dor, cada alegria, cada tristeza, cada prazer, enfim, todos os momentos.


A partir dessa compreensão, Nietzsche lança a reflexão que se deve fazer diante da perspectiva de se viver o Eterno Retorno, pois diante dele se percebe as forças ativas e reativas que dão origem a moral.


O que Nietzsche nos mostra com o pensar na perspectiva do Eterno Retorno é que cada momento deve ser vivido com toda a intensidade a fim de que esse momento se torne eterno. Amar de tal forma esse momento, desejá-lo de tal forma que o desejo deve querer viver outra vez esse instante. Assim, desejar viver outra vez um momento é afirmar a vida e não desejar viver outra vez o momento é negá-la. Podemos odiar ou amar a vida ao penarmos na sua repetição constante. Imaginá-la repetindo-se pode nos causar horror ou alegria e esses sentimentos vão nos posicionar como fortes ou impotentes diante da vida.
Para muitos tal reflexão é angustiante e inaceitável, porém, ao pensarmos na vida de Nietzsche, perceberemos a estreita relação com sua filosofia. Perdeu o pai cedo, teve uma saúde debilitada e por fim enlouqueceu ainda na maturidade, loucura da qual nunca se recuperou, levando-o ao óbito. Dizem que sua loucura foi resultado de uma DST, outros dizem que foi um problema fisiológico, enquanto outros diziam que foi sua própria filosofia. Mas, o importante não é definir o motivo e sim perceber que Nietzsche amava a vida com todas as sua inquietações, instabilidades e sofrimentos. É dele a frase: “Porque, note-se bem: foi precisamente nos anos da minha mais débil vitalidade que eu cessei de ser pessimista” (Nietzsche, Ecce Homo).

Assim, podemos tirar proveito dessa reflexão de Nietzsche, pensando se de fato amamos nossa vida. A resposta é: somente amamos o que superamos, nunca os traumas. Talvez haja muito para ser resolvido em cada um de nós, a questão é se queremos resolver ou não.