domingo, 21 de março de 2010

Moral em Crise

O Caso Nardoni e a Família Brasileira


Ao se esfriarem os ânimos, porém, não fora de cena por conta do julgamento, podemos parar e discutir o polêmico caso envolvendo a menina Nardoni, atirada pela janela do quarto andar de um prédio em que passava uns dias com a madrasta e o pai, na cidade de São Paulo. Não no sentido de descobrir algum culpado, mas tentar perceber esse fenômeno psico-social, produzido no bojo dos nervos da população brasileira. Essa necessidade inquietante de punir, de descarregar todo ódio acumulado sobre alguém. Uma raiva cega, impaciente, desejosa por punição, mais do que por justiça.
O drama vivido pela família Nardoni mostra a atual conjuntura do estado fragmentado dos afetos das famílias de nosso país. Sendo um país em que a política vive um estado de total descrédito, estampado no rosto da população, cuja esperança cada dia perde um pouco mais de motivação, um pouco mais de paciência. Podemos ver um olhar desanimado para as infinitas formas de corrupção, sem possibilidade de mudança. O olhar do brasileiro mostra sua alma descontente.
Num país que parece não desejar mudar sua forma de organização política. Torna-se interessante o motivo da indignação do povo frente a um crime tão particular, não sendo o primeiro e nem o último. Cuja barbaridade, comparada com outras, se tratando de intensidade, pode ser considerada, muitas vezes, não tão bárbara quanto outros crimes cometidos no Brasil.
Não há como negar, atirar uma menina pela janela, sem dúvidas é um crime bárbaro e monstruoso. Ter matado com as próprias mãos, ter visto morrer, torna o crime ainda pior. Ao pensarmos nos desvios de dinheiro público destinado à educação, saúde, condições para o desenvolvimento, podemos perceber outras formas de matar, tão cruéis como esta.
Imaginemos documentos falsos e dinheiro ilegal nas contas de políticos corruptos. Vejamos as conseqüências: dinheiro desviado da educação produz marginais, traficantes, indigentes, mendigos e meninos e meninas de rua. Pessoas como estas sofrem mortes horríveis todos os dias. Mas isso não nos choca mais do que uma menina lançada pela janela de um apartamento, cujo suposto autor, segundo a polícia, foi o próprio pai. Imaginemos o dinheiro desviado da saúde: crianças pobres morrendo por falta de atendimento médico, precárias condições dos hospitais públicos, sem contar as crianças desassistidas, com câncer, AIDS...
Porém, todas estas situações não parecem revoltar tanto quanto nossa suspeita de um pai matar a filha. Imaginemos os valores em dinheiro desviado do PAC, ocasionando falta de emprego e, portanto, pais suicidas, meninos pedindo nos sinais, trabalhos infantis desumanos, mais mortes. Penso que assistir crianças morrerem de fome dos gabinetes do legislativo, do conforto das prefeituras, das casas dos governadores ou do palácio do planalto deve ser menos horrível que vê-las olhando nos nossos olhos. Desses lugares não há necessidade da manchar as mãos com sangue, no máximo de tinta de caneta num papel.
O descrédito da política, da justiça, das igrejas, das ONGs, dos militares, não denunciam a fragmentação dos valores familiares, são agressões externas a família. Nem mesmo a ação bárbara do exército entregando jovens negros e pobres para serem mortos pelo tráfego pode ser pior que uma família destruída por dentro. Nenhum golpe é tão violento quanto ter a certa percepção de que os padrões morais que mantiveram a mais forte estrutura humana anti-individualista ruir.
Há muito tempo os pais também matam, há muito tempo a família é uma instituição ruindo, desabando. Mas é também a única casa que nos resta, único lugar de amparo, de afeto, de amor, de atenção, de cuidado. Não foi o crime bárbaro que levou muitas pessoas às ruas, outros tantos a ocuparem o tempo assistindo e lendo as noticias, geradores de comentários indignados. O que ocorreu foi o fato de não suportarmos ver a nossa única estrutura, frágil, torta, porém, mais confiável que o Estado, se desmanchar totalmente. Pois se isso ocorrer não teremos mais no que nos apoiar, nenhuma referência, estaremos sozinhos. Restará um angustioso e insuportável niilismo, um nada de estrutura moral, uma angustia indesejada pela possibilidade de ver o fim da moral vigente e a oportunidade de vislumbrar um vazio de sentido da vida.
Por isso, o caso da menina Nardoni nos chocou, pois abalou nossa estrutura familiar. Nosso senso de confiança e proteção, nossa certeza de sermos amados e desejados. Isso já acontece, na verdade, sempre aconteceu. E nosso esforço, na sua maioria inconsciente, apenas escancara o quanto podemos nos sentir provocados por alguém ou alguma situação que mostre o quanto nossas famílias, apesar de empiricamente fragmentadas, alimentam cegamente um ideal de perfeição.

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