domingo, 27 de setembro de 2009

Solidão

O fim do labor é sempre o inicio da vida privada, cujo término é sempre a solidão. Ao iniciar pela despedida dos colegas de trabalho e terminar com um boa noite cansado dirigido ao porteiro, quando no máximo algum encontro casual com um vizinho no elevador. O fim é sempre certo, a solidão. Nessa hora Ana prefere repetir para si mesma o velho ditado: “antes só que mal acompanhada”. De fato tenta se convencer de que a solidão é melhor que companhias inconvenientes. Tem como slogan para esse momento de sua vida uma frase do filósofo Alemão Friedrich Nietzsche que ouvira em algum momento, em algum lugar, não lembra mais, apenas sabe que a frase foi cravada em sua memória e ajuda a sustentar seus dias. A frase é: “Não me tires da solidão se não queres me oferecer boa companhia”.
Mulher de trinta anos, fora casada dos vinte e um aos vinte e oito. Nos últimos dois anos permaneceu sem nenhum relacionamento mais intenso e envolvente. Do casamento, nenhum filho nasceu. De forma alguma reclama do tempo que permaneceu casada, mas sabe que alguma coisa aconteceu no dia-a-dia, talvez o próprio dia-a-dia, o próprio ter de conviver um dia após o outro, tendo que se ver perdendo, se perdendo, concordando, fazendo concordar, fazendo amar. Foi se rasgando como as pedras de um rio secando rasgam as águas que ali ainda correm (lembrando Gonzaguinha).
O casamento passou, foi embora, e com ele os sonhos de mulher. Agora Ana está entre novamente se render ao amor ou redefini-lo, inventá-lo de outra forma. Vê-se pedida, cada vez mais longe da cultura herdada por sua mãe, sem se ver perto de qualquer outra coisa para substituir seus anseios de mulher da cultura. Como se ela mesma estivesse rachando, como se fosse a impossibilidade do retorno e do avanço. E assim permanece estática, imóvel.
Em situações como esta cabe dar-se ao vinho tinto suave, ou mesmo martini, acompanhado de cereja. E se assim o fizesse naquela noite, nada de novo faria, pois já se entregara ao doce sabor do esquecimento numa e noutra taça. Já fizera isso tantas vezes nos últimos dois anos.
Mas nesse dia em especial, tudo que Ana não queria era sentir-se sozinha ou ter de esquecer sua solidão, afogando-a na bebida. Almejara companhia com tanta força que agarrara-se ao travesseiro apertando-o com todas as suas forças e desespero, enquanto lavava-o com suas lágrimas. Naquele momento, apenas queria que o travesseiro percebesse o tamanho de sua solidão.
Depois de algum tempo abraçada ao travesseiro, fazendo dele um tesouro incalculável, Ana para de contrair seus músculos e deixa escapar o braço direito que cai no colchão. A cena vista de cima teria o seguinte formato: Ana ao lado direito da cama, o travesseiro em sua barriga e seu braço direito procurando no vazio um corpo que pudesse confortá-la. Seus dedos aparentavam que tocariam em alguma coisa, mas nada encontrava, nada que pudesse apalpar. Insistia e sua angustia aumentava.
Naquele momento vieram dois pensamentos, apontando duas saídas. Mas não soube tomar nenhuma atitude em relação a eles. Ficou ali imóvel. O primeiro era ligar para seu ex-marido, passar por cima de seu orgulho, correr o risco de ser rejeitada, mais que isso, reviver a própria destruição de seus sonhos, permitir ser outra vez espedaçada aos poucos pela moral do amor, sustentada pela obrigatoriedade. O segundo, próprio da modernidade e da falta de envolvimento, seria compartilhar sua solidão sem que soubessem, sem que desconfiassem. Já havia ouvido de amigas a existência de bons garotos de programa.
Seus dois pensamentos distintos denunciavam romper com a moral da obrigatoriedade do amor como único possível no casamento ou se render a esse amor num gesto de fraqueza. Por outro lado, usaria somente o que o mercado do acompanhamento oferece e que não a tiraria da solidão. Assim, Ana ficou ali entre dois mundos, sem pertencer a nenhum deles. E já que se sentia incapaz de decidir, tinha que aprender a encarar a solidão.

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